quarta-feira, março 05, 2008

De quem é a escola pública?

Qualidade e equidade são duas faces da mesma moeda. Nem uma nem outra são contempladas na actual política educativa

As escolas públicas portuguesas estão a viver difíceis e (quanto a mim) perigosos momentos. Peça a peça, uma legislação fragmentada e sob forma de decretos-leis (e, portanto, sem debate nem sequer na Assembleia da República) está a criar um puzzle de que já se adivinha o resultado final: uma escola centralizada e burocrática, sem autonomia e cega à diversidade social, centrada nas percentagens estatísticas, destruidora da profissão docente. Os professores têm medo, os sindicatos encurralaram-se nas suas impotências, o Governo acha que é dono das escolas e capataz dos professores.
Como instituição social, a escola não pertence a nenhum governo mas sim ao país, a todos os parceiros, a todos os que nela vivem e a todos os que dela esperam, legitimamente, um importante contributo positivo para a educação e formação das gerações mais novas.
Sei que é difícil qualquer debate de fundo sobre a escola, o seu presente e o seu futuro; é uma das questões mais fortemente enviezadas por quase todos aqueles que, tendo no passado sido os seus "eleitos" (a minoria de alunos que aprenderam e se "formaram"), são os que hoje escrevem e falam sobre a escola, sempre virados para uma fictícia "idade de ouro", algures num passado perdido que gostariam de ver reaparecer. Em geral, os que mais escrevem e falam não têm qualquer ideia sobre o que é hoje uma escola pública, com uma escolaridade obrigatória alargada, num tempo de tecnologias e num mundo multicultural. O tempo não volta para trás.

A OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico) tem desenvolvido, há mais de dez anos, uma série de trabalhos sobre "A Escola de amanhã"; pretende a OCDE traçar cenários, a partir das tendências actuais assim como do que é "desejável" e "provável", de modo a que saibamos que caminho queremos percorrer e possamos, então decidir os passos a dar.
Que queremos? "Recriar" a escola do passado correndo o risco de as escolas se tornarem ingovernáveis? Manter o que herdámos com alguns acrescentos e remendos? Abandonar a escola (cara e pouco rentável) e promover o "cheque-educação" e outras medidas num mercado livre em que o saber se vende e se compra e o Estado deixa de assumir a responsabilidade da educação para todos como bem pessoal e social? Ou queremos re-fundar a escola que herdámos, melhorá-la e adequá-la a novas exigências, libertando-a dos jugos centralistas, percebendo que "igual para todos, da mesma maneira e ao mesmo tempo" gera mais desigualdade e que a equidade e a exigência não se constroem com mais repetências, expulsões e controlos burocráticos?

Os últimos dois diplomas governamentais, um dos quais já em vigor, são peças decisivas deste puzzle perverso. O diploma relativo à avaliação dos professores quer avaliá-los um a um observando as suas aulas. Com "quotas" para excelente, bom e por aí fora. E quem avalia? Colegas (os ditos "titulares") muitas vezes com menos saberes e experiência que os avaliados. Esses "avaliadores" reportam à inspecção (ou deveriam reportar, dado que a inspecção desapareceu misteriosamente no último documento que chegou às escolas). Embora sem regulamentação conhecida, o diploma "é para já". E já quer dizer a meio do ano, sem se terem previamente estabelecido objectivos, metas ou critérios.
Está criado o caldo da desconfiança, da competição e das invejas. A escola, centro da vida educativa, lugar de equipas docentes que asseguram aprendizagens, torna-se numa repartição da 5 de Outubro. Sabiam, por exemplo, que na avaliação de quem passou ou não a professor titular (casta de que se desconhece a origem e o destino) foram penalizados todos aqueles que deram faltas por doenças devidamente comprovadas? E por isso as escolas estão â beira de um ataque de nervos; os professores mais velhos querem reformar-se, os mais novos angustiam-se com os “maremotos” legislativos.
Quanto ao diploma relativo à organização e gestão das escolas, cujo período de debate "público" termina a 8/2/08, a situação é porventura ainda pior. Escolhe-se um director, que, por sua vez, escolhe todos os responsáveis de todos os cargos das escolas. Organizar as escolas assim para quê? Com que objectivos? Qualquer um de nós sabe que, tanto individualmente como em grupo, primeiro decidimos o que queremos fazer e só depois nos organizamos para o fazer. Ou não será assim?

A questão é séria: queremos uma escola pública com qualidade e equidade? Queremos que esse serviço seja assumido pelo Estado democrático? Ou queremos que o saber se venda e se compre como outro bem qualquer?
Eu quero uma escola pública forte, pois só assim ela pode contribuir para atenuar as desigualdades sociais e assegurar a todos, qualquer que seja o seu lugar de nascimento e o seu meio social, a apropriação do saber e do conhecimento que são património de todos nós e não apenas de alguns. As tentativas de retorno ao passado estão condenadas (OCDE dixit) e a mercantilização reforçará fortemente as desigualdades sociais.

Qualidade e equidade são duas faces da mesma moeda. Nem uma nem outra são contempladas na actual política educativa. Voltando aos cenários da OCDE, vejo, no fim deste puzzle, uma mistura de tentativa de retorno ao passado e de mercantilização de actividades educativas (que já começou, dos tempos livres ao inglês, por exemplo). É isso que realmente queremos?

Texto da autoria de: - Ana Benavente - Professora universitária

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