quarta-feira, junho 16, 2010
EDUCAÇÃOZINHA, NO PAÍS DAS MARAVILHAS
ESTAMOS A CRIAR “ ALUNOS QUE NÃO SABEM LER, NEM ESCREVER “
Publicado em 16 de Junho de 2010, no SAPO.PT
--- “ Maria do Carmo Vieira quer dar uma “reguada” ao sistema de ensino português: através da Fundação Manuel dos Santos (presidida pelo sociólogo António Barreto), lançou esta semana o ensaio 'O ensino do Português'.
Sem pudor, a professora de Língua Portuguesa - já com 34 anos de experiência - dirige duras críticas ao baixo nível de exigência do actual sistema de ensino, aos professores, aos sucessivos Governos, às escolas. No dia em que arranca a primeira fase dos exames nacionais do ensino secundário, o SAPO foi ouvi-la.
P:- O ensaio “O ensino do Português” vem apontar o que está mal na educação em Portugal. O seu objectivo era dar uma “reguada” no sistema educativo?
R:- A escola não pode permanecer tal como está, porque já bateu fundo – e não só em relação ao ensino do português, mas em várias outras matérias. Estamos a ensinar na base daquilo que é fácil, do que não exige esforço, nem trabalho. Estamos a fomentar gerações e gerações de alunos que não pensam, nem sequer sabem falar ou escrever. Ao tornar a facilidade da escola comum para todos, um aluno que venha de um contexto familiar rico, do ponto de vista cultural, não vai ficar prejudicado, porque os pais hão-de ter sempre dinheiro para ele ir para explicadores ou para ir para boas escolas. Já aqueles que vêm de espaços mais fragilizados socialmente, esses sim é que vão ser torturados e explorados pela sociedade.
P:- Hoje, arrancam os exames nacionais. Também eles são um exemplo desse facilitismo?
R:- Sem dúvida. Não é preciso estudar para um exame. Basta ir com um pouco de sorte e, como aquilo tem muitas cruzes, às vezes é quase 1x2. Estes exames são áridos. Um aluno qualquer que vá fazer aquilo, está a fazer aquilo porque é obrigado a fazer.
P:- E, portanto, não surtem resultados do ponto de vista da aprendizagem?
R:- Tal como estão, creio que não.
P:- Também os programas escolares actuais partilham do mesmo problema?
R:- Os programas são feitos à base da mediocridade. Não têm um fio condutor, não têm um objectivo primeiro. É tudo solto. As coisas estão soltas, e sei isso pela disciplina de Português, que lecciono. No ensino da Literatura, não há uma contextualização do autor. Quando um professor pede a um aluno para estudar a contextualização, encaminha-o para a Internet, quando deve ser o professor a exprimir isso. Se assim não for, o professor não serve para nada.
P:- E, portanto, há um esvaziamento das funções do professor?
R:- Sem dúvida. Esse esvaziamento não atinge apenas os conteúdos, mas também os próprios professores. É quase como nos desertificarem daquilo que nós somos, daquilo que nós temos para dar aos nossos alunos, do nosso estudo, da nossa dignidade enquanto professores.
P:- Nesse caso, quais são os caminhos alternativos onde se deve apostar?
R:- A competência científica de um professor tem que ser novamente privilegiada. Neste momento, não é. É mais prejudicial um aluno ter o professor “bom camarada”, mas que não sabe nada e que nada sabe transmitir, do que ter um professor que talvez não seja muito bom pedagogo, mas que tem muita competência científica. É preciso também insistir na formação dos professores: não sabem escrever, não sabem pensar. Gostam, não daquilo que é artístico, mas daquilo que é bonito… Fazem das crianças estúpidas e intuem aquilo que as crianças não são. Qualquer criança responde à exigência, se vir que o seu professor também a estimula.
P:- Tendo em conta tudo o que disse: os pais podem ou não confiar na educação que o sistema hoje dá aos seus filhos?
R:- Não podem. E nem os pais não podem ficar descansados. O que este Ministério tem feito, e isso é muito nocivo, é libertar os pais das suas preocupações com os filhos. Parece que tudo fica entregue à escola… Mas os pais são muito importantes no acompanhamento do estudo dos seus filhos. Não é correcto que um aluno passe para a quarta classe sem saber ler, nem escrever. Os pais têm que acompanhar isso, têm que ver que alguma coisa não está a ser bem feita. Os pais têm de se voltar a interessar.
P:- Defende que as más práticas no sistema educativo já se arrastam desde 2003. Aponta o dedo a algum Governo em particular?
R:- Fui professora a partir de 74/75 e o que se reparava é que, na década de 80, estas teorias já estavam em voga. Se os alunos atingissem os objectivos mínimos, podiam passar – e os objectivos mínimos eram nada. Os alunos foram passando sem saber nada. Este miserabilismo começou nessa altura e agora acentuou-se. Acentuou-se em 2003/2004 com a implementação desta nova reforma. Desde aí, tem sido uma “guerra”...
P:- De que resultam estas más opções em matéria de política educativa?
R:- É evidente que neste momento se trabalha para as estatísticas. Houve o desejo de impor uma série de teorias de pedagogia que são perfeitamente caducas. É contra essas teorias que são defensoras da apologia do presente, dos programas televisivos, da subestimação da literatura que eu me pronuncio, porque não condizem com os interesses dos alunos. E as grandes vítimas de tudo isto são os alunos, enquanto o Ministério está a desrespeitar a sua função de Ministério.
P:- Por isso, defende no seu livro que algumas práticas educativas tradicionais deveriam ser retomadas?
R:- Por exemplo, quando se diz que não se deve memorizar, está a pôr-se em causa uma capacidade incrível das crianças que é a memória e a tabuada é para memorizar. Por isso mesmo, é que eu tenho alunos de 12.º ano que às vezes nem sabem quanto é 9x3. Há alunos que não me sabem conjugar os verbos: só me dizem presente, passado e futuro. E isso é porque não se estuda a gramática desde o início.
P:- Diz que a falta de paz no sistema educativo contribuiu para a degradação da sua qualidade. Ainda assim, pede aos professores que desobedeçam às actuais directivas. Em que ficamos?
R:- Esta ‘guerra’ foi suscitada pela imposição de tanta novidade. Era o novo só pelo novo e os professores nunca foram convidados a intervir. Só uma facção – aquela que era a favor destas novas teorias. O que eu peço no meu livro é que é preciso desobedecer a isto: não posso obedecer a quem me vem dizer que eu tenho de ser compreensiva com os erros ortográficos. A paz é um bem essencial para se ensinar, mas se obedecermos a tudo isto, estamos a abandalhar a nossa profissão e isto não é correcto, nem connosco, nem com os próprios alunos. Há momentos em que é forçoso desobedecer, nem que nos ameacem. A mim ameaçaram-me várias vezes…
P:- Quem a ameaçou? Pais?
R:- Não. (silêncio)
P:- O sistema?
R:- O sistema, precisamente.
P:- Mais recentemente, criticou também o programa Novas Oportunidades, pelo facilitismo com que atribuiu competências…
R:- Trata-se de uma fraude e de uma falta de respeito para com as pessoas que acreditaram no programa, Conheço inúmeros alunos que pensavam que voltavam à escola para aprender e aperceberam-se de que não iam aprender nada. Não se faz o 7.º, 8.º e 9.º em três meses, não se faz o 10.º, 11.º e 12.º ano em seis meses. Isto não tem qualquer equivalência, porque se esses alunos fossem questionados, não sobre as matérias até do 10.º,11.º e 12.º, mas sobre qualquer coisa minimamente inteligente, estavam a zero. Eles são a personificação da ignorância, mas uma ignorância que é fomentada pelo próprio sistema e, por isso mesmo, eu digo: é preciso desobedecer a isto.
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